Voltando
ao assunto de como as pessoas lidam com sua privacidade aqui na
Alemanha, recentemente ouvi essa frase: "Isso é uma invasão de minha
privacidade. Não quero dizer nada sobre esse assunto." Dou três chances
pra vocês tentarem descobrir quem falou isso. Não foi em um
interrogatório policial. Não foi em uma discussão política e nem em um
filme policial cliché. Eu ouvi esta frase de um garoto de 13 anos, na
sala de aula quando perguntei "What do you do in your free time?" (O que
você faz no seu tempo livre?).
Antes que vocês digam que este guri
estava apenas de brincadeira eu garanto a vocês que ele estava
apenas reproduzindo muito bem o peso e valor que as pessoas aqui nesta
cultura dão à sua privacidade. Quando comecei a ensinar aqui eu ficava
irritada e confusa depois de cada aula. Eu simplesmente não entendia
porque a mesma estrutura de aula que fazia o maior sucesso no Brasil era
um grande fracasso aqui.
Em Salvador, era raro ter uma turma que não se
empolgasse com atividades que os fizessem levantar, andar pela sala
falando uns com os outros e falando de si mesmos. Aqui, para essas
atividades funcionarem, é necessário uma longa preparação. Já percebi
que elas só funcionam bem depois de muitas outras
para se conhecer e criar um certo clima de intimidade no grupo. Além
disso, se você e a turma ainda não se conhecem muito bem, sempre ajuda
se você deixar bem claro no início de uma atividade dessas, que você não
está nem aí pra vida pessoal deles e que eles devem inventar respostas
se quiserem.
Comecei a dar essa instrução antes de
cada atividade que tivesse pergunta pessoal, de qualquer tipo por mais inocente que fosse. Comecei
também a dar informações sobre mim mesma que eram obviamente inventadas,
só pra estabelecer um exemplo. Tipo, em uma aula eu dizia que tinha
nascido aqui, em outra que tinha nascido no Brasil e por aí vai. De
repente, um ou outro começa a se interessar e de fato querer saber.
Cris, falando sério agora: você nasceu onde mesmo? Quando essa pergunta
surge, na qual eles de fato querem saber alguma coisa pessoal sua, você
sabe que o grupo atingiu aquele nível de abertura necessário pra
atividades comunicativas darem certo, ou o mesmo nível do segundo dia de
aula no Brasil.
Um outro aspecto importante é assegurar
às pessoas que a privacidade delas está protegida com você. Eu gosto de
fazer uma lista de contato nas minhas turmas para que, caso aconteça
alguma emergência, a gente possa entrar em contato um com os outros
facilmente. Antes de oferecem seus dados, os alunos sempre gostam de
ouvir que eu não vou passar a lista pra mais ninguém e que ao invés de
jogar aquele papel no lixo, que eu darei fim a ele no picotador de papel assim que o curso acabar. É um
monte de detalhe, pra quem vem de uma cultura onde basicamente ninguém
tá nem aí com essa coisa, mas vale a pena passar por isso pra que no
final das contas o ambiente de sala de aula seja relaxado e para evitar
que os alunos achem que você é um interrogador e que eles estão de volta
aos tempos da Alemanha dividida.
Isso é um caso sério mesmo. Por questões
históricas esse povo tem trauma de ser seguido, observado, interrogado.
A Alemanha já viveu vários momentos em que privacidade não era um
direito e sim apenas um conceito distante e por isso hoje, que de fato é
possível, ter uma certa privacidade, eles a protegem com unhas e dentes nas
menores coisas. Por exemplo, ninguém te pergunta qual a sua religião,
pra quem você votou, se você é casado ou solteiro, se tem filho.
Pouca
gente se exaspera quando descobre que você não tem celular ou quando te
liga e ele está desligado. Se você liga pro trabalho e diz que está
doente e não pode ir trabalhar, ninguém fica te perguntando o que você
tem, você conta se quiser. Inclusive determinadas perguntas no ambiente
de trabalho podem até gerar processos de invasão de privacidade. A precaução com a privacidade no terreno virtual também beira a paranóia e sempre me intrigou, já que a Alemanha é campeã em produção e exportação de tecnologia que ela mesma é cautelosa ao usar.
Para resumir a conversa, tem um velho
ditado que diz: "Quando em Roma faça como os romanos". Já que estou na
Alemanha, aprendi a ser mais cautelosa e cuidar mais da minha
privacidade. Acho que encontrei o caminho do meio entre a super
exposição brasileira e a super paranóia alemã. E o ideal pra grande
parte das coisas desse mundo não é mesmo poder apreciar de tudo com
moderação?