"Como você lida com o
racismo lá?" Essa era a pergunta que eu mais tive de responder ao voltar
ao Brasil depois de meu primeiro ano de Alemanha. A minha resposta, que na
época surpreendia a todos – inclusive a mim mesma, era sempre: "Nunca tive
de lidar com racismo lá". Deixa eu explicar direito o porque de minha
surpresa e de minha resposta.
Há onze anos eu tinha acabado de
terminar a faculdade e queria ter uma experiência no exterior antes de cair de
cabeça no mercado de trabalho e de ter de me assumir adulta de uma vez por
todas. Como professora de inglês, minha primeira escolha tinha sido a
Inglaterra, mas como as coisas graças a Deus nem sempre saem do jeito que a
gente planeja, eu acabei conhecendo uma pessoa
maravilhosa, que é a tampa de meu balaio, com quem eu decidi dividir
minha vida. E ele morava na Alemanha. Resolvi fazer uma pequena adaptação nos
meus planos e mudei o destino de minha minha viagem. O amor enche a gente de
coragem pra fazer meio mundo de maluquice, mas no fundo, na época eu estava
morrendo de medo do que iria encontrar aqui. É que naquele tempo eu não sabia
quase nada sobre a Alemanha e o que sabia vinha de livros de história, ou seja,
um passado macabro e sangrento. Quando não era isso era uma notícia aqui outra
ali, no geral bem limitadinhas e estereotipadas do tipo Oktoberfest e
neonazistas. Claro que eu tive medo e claro que estava tensa a respeito do que
me esperava.
Quando cheguei o que me
impressionou foi perceber o quanto a imagem que se vende deste país é
equivocada. Aqui tem sim Oktoberfest e neonazistas. Tem uma série de outros
problemas e preconceitos também contra a mulher e contra estrangeiros além de
ainda terem dificuldade em lidar com todas as questões que a multiculturalidade
traz consigo. A diferença é que os
limitados e racistas daqui se escondem muito bem, e quando se mostram, são
muito bem punidos. A sociedade debate constantemente sobre a intolerância e a
mídia não dá trégua sobre esse tema. As pessoas no geral são cuidadosas com
essas questões, são cautelosas nas escolhas das palavras quando não tem certeza
se certo termo pode ser ofensivo e pedem desculpas imediatamente quando, sem
querer, ofendem. Eu já passei por várias situações em que a pessoa com quem eu
estava falando dizia alguma coisa sobre o cabelo ou cor da pele de alguém e
logo em seguida me falava "Desculpa que eu falei assim, não sei se isso
ofende. Como é o certo?" Eu sempre me emociono em situações como essas
porque nelas eu vejo seres humanos, que apesar de não sofrerem a mesma dor do
outro, mostram empatia, humildade e vontade de mudar para o bem estar geral.
Teve uma vez que eu estava em um
trem e um outro passageiro estava muito incomodado com minha presença. Não
estava entendendo bem qual era o problema dele comigo até que ele fez um
comentário racista se referindo a mim. Me levantei com a intenção de dizer umas
poucas e boas a ele, mas antes de poder abrir minha boca, TODOS os passageiros
do vagão (umas 15 pessoas ) se revoltaram e tomaram a frente, discutindo com ele
de uma forma que me surpreendeu.
A estória terminou com uma mulher que exigia
que ele se desculpasse comigo e como ele se recusou os demais passageiros
chamaram a polícia. Quem me conhece sabe que eu choro por tudo e claro que
chorei no meio daquele fuzuê. Os passageiros me consolavam achando que minhas
lágrimas eram por ter sido vítima de racismo. Mal sabiam eles que eram lágrimas
de emoção por causa da reação deles. Foi um sentimento muito especial me ver
sendo defendida e aparada por um grupo de pessoas desconhecidas.
Fiquei
pensando que todas elas eram muito diferentes, mas que uma coisa tinham em
comum: o senso de justiça e a certeza de que um problema social é um problema
de cada um deles. Cada um resolveu por si só levantar a voz e no final das contas
eles formavam um grupo que se indignava com o comportamento racista do homem
que me ofendeu. Vários passageiros me pediram desculpas depois da confusão. Um
senhor me disse "Não deixe esse idiota interferir no que você veio fazer
aqui, não. Aqui tem muita coisa boa." Essa atitude com certeza é uma
delas.
Não são somente as pessoas a
caminho do trabalho nos transportes públicos, que se preocupam em mudar a
percepção de alguns de que a Alemanha é um país injusto. O governo daqui também
investe comstantemente em medidas sócio-educativas e reparadoras. Aqui existe
cota pra mulher, estrangeiros, portadores de deficiência. Tem benefício pra
quem tem filho na escola, pra quem é estudante universitário, pra ajudar a
pagar o aluguel, pra ajudar a pagar atividades culturais e educativas se a
família tem filho, pra comprar livros, pra comprar remédios e por aí vai.
Judeus tem direito de imigrar pra cá sem a burocracia que pessoas de outras
confissões enfrentam. A sociedade entende que isso tudo é normal. É raro ver alguém
questionando essas medidas. Mesmo os alemães medianos parecem entender que se
houve um erro histórico, uma retratação é inevitável. Se existe discrepância
social, todo mundo sai perdendo então é melhor ter menos pra ter mais, dividir
pra que ninguém deixe de ter. Infelizmente eu percebo que as coisas andam
piorando aqui também, mas o povo
questiona tudo sem parar e isso atrasa
as mudanças negativas, o que é bom.
Aí eu fico pensando no Brasil e
de como a gente se orgulha de dizer que somos o país mais tolerante do mundo. A
gente se interessa em saber como é a questão do racismo em outras partes do
mundo e adora ficar repetindo essa de que somos um povo que não sabe o que é
racismo porque é todo mundo misturado. Pra muita gente no Brasil, ativista de movimento
negro é paranóico e ações afirmativas é racismo às avesas. Tem um monte de
gente que fala como se tivessem sido pessoalmente ofendidas com toda e qualquer
iniciativa que busca melhorar a situação social de um grupo que não goza dos
mesmo benefícios que o resto da sociedade.
Me choca o fato de que em
Salvador, cidade onde eu nasci, apesar de mais de cinquenta por cento da
população ser negra, ainda é possível ser a única negra no restaurante, na aula
de ballet, na sala de espera de consultório chique, na sala dos professores da
escola particular. Fico especialmente triste quando eu percebo que muita gente
passa a vida inteira sem nem se dar conta dessas coisas, achando super normal
que outros tenham a vida mais difícil que a sua baseado em um detalhe que não
se pode escolher, como gênero, cor da pele, origem. Infelizmente, em nosso país
tem gente que acha que quem sofre discriminação deve sofrer calado, sem
questionar nada, sem exigir mudanças. Deixa quieto que assim tá bom. Pra
alguns.
Hoje em dia quando volto ao
Brasil e alguém me pergunta como lido com o racismo aqui, minha resposta passou
a ser "muito melhor do que eu lido com ele no Brasil". Aqui se
entende que discutir e questionar os preconceitos é trocar idéias e evoluir, já
em meu país quem é engajado em alguma causa tem sempre de primeiro explicar que
não é nem paranóico nem radical. É triste, mas na verdade sabem como é que eu
lido mesmo com o racismo aqui? Guardando minhas forças pra enfrentar ele quando
chego em meu país.
P.S. Quem conseguiu ler este texo até o fim, tem de me prometer que vai ler esse daqui também. Porque desconstrução é vida!
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