A primeiríssima vez que fui à Bremen, na Alemanha, foi em 1999. Cheguei
meio cabreira, assustada, com medo de racismo e das tantas estórias de horror
que eu ouvia de estrangeiros na Europa e fui surpreendida com a abertura e
tranquilidade com as quais eu fui recebida. E essa forma de me acolher
permaneceu por muito tempo, tanto que demorou bastante até eu começar a notar
um monstro feio mostrando suas garras.
Antes de eu contar como isso aconteceu, deixa eu explicar uma coisa:
apesar da Alemanha ser um país pequeno se comparada ao Brasil, sua diversidade
cultural também é imensa. As diversas regiões tem geografia, costumes,
culinária (e cervejas!) diferentes e as pessoas apreciam essa diferença. Eles só
dizem que são alemães quando não tem jeito, mas estufam o peito com orgulho ao
dizer que são de determinada cidade ou região.
Tendo esclarecido isso, acrescento que o que eu vou contar aqui tem
muito a ver com o que se vive no norte da Alemanha. Pode ser bem diferente em outras
regiões. Mas voltando a 1999, Bremen me tratou muito bem. Fui recebida por
pessoas sorridentes e interessadas em
saber como eu pensava, como era minha cidade, minha vida, as comidas no
Brasil, como eu me sentia na Alemanha.
No início era como se eu fosse uma
espécie de celebridade. Era o centro das atenções em qualquer festa. Nas
rodinhas de apresenção em eventos, se eu não tomasse cuidado, era a única a
falar porque todos queriam me ouvir, saber de mim. Tendo sido criada como filha
única mimadíssima, adorava aquilo tudo. Fiquei ainda mais comunicativa, fiz um
monte de amigos e tinha certeza que tinha encontrado o paraíso mundial da
tolerância e boa convivência entre as pessoas.
Mas o tempo foi passando. Minha vida foi ficando mais normal, tomando cara
de vida de cidadã e menos de turista recém-chegada. E com essa mudança de
rotina comecei a perceber que minha popularidade não era assim somente linda e
maravilhosa. Existia uma coisa meio estranha naquela atenção toda que recebia,
eu só não conseguia saber exatamente o quê.
Comecei a perceber que as pessoas se interesavam muito pelo meu cabelo.
Achavam lindo, mas sempre queriam saber se era de verdade (?), se dava trabalho
de cuidar, que produtos eu usava. Perguntavam se podiam pegar. Quando se
tratavam de pessoas com as quais eu tinha mais contato, pessoas mais ou menos
próximas, eu muitas vezes dizia que sim e aí elas se espantavam e comentavam que
a textura de meu cabelo não correspondia com o que elas estavam esperando.
E os
elogios não paravam. A impressão que eu tinha é que sempre demorava um
pouquinho demais pra eu conseguir mudar o assunto da conversa depois que o tema
caia em meu cabelo. Aquilo começou a fazer com que eu parasse de apreciar
aquela atenção toda. Tem dias que a gente só quer entrar e sair de um lugar,
mas comigo parecia que era impossível. Comecei a me sentir, sei lá...super
exposta, invadida.
Queria muito entender porque a cordialidade das pessoas em algumas
situações de repente começava a me incomodar. Será que eu estava pirando? Queria
muito entender porque eu estava me sentindo assim, até que um estranho me
ofereceu a última peça que faltava pro meu quebra-cabeças. Esse estranho, que
esperava a vez dele depois de mim e meu marido em uma fila de supermercado, me
lança a seguinte pergunta depois de me ver sorrindo „Ei, os seus dentes são de
verdade?“Fiquei olhando pro tal homem com cara de interrogação. Meu marido não
se conteve e foi mais direto querendo logo saber que tipo de comentário era
aquele. O rapaz explica que seria um elogio e naquele exato momento percebo que
na Alemanha muitas vezes é como se eu fosse um animal exótico.
Tudo chama atenção, tudo desperta a curiosidade e as pessoas estão
constantemente analisando tudo. Meus dentes, meu cabelo, minha pele, meu
sotaque, meu intelecto, minha forma de andar, meu corpo inteiro. Ficam na
expectativa pra ver como eu vou me comportar,
se e como vou dançar, em que idioma me comunico com meu marido. Como se
não bastasse, sentem a necessidade de comentar todas as coisas que observam sobre
mim, sem fazer uso de qualquer filtro que seja e se decepcionam se minhas
respostas ou comportamentos não correspondem ao que esperam.
Comecei a me cansar de despertar sempre o mesmo assunto da conversa.
Passei a recusar certos convites por perceber que minha presença serviria de
troféu pra consciência de quem me convidou. Era como se eu estivesse ali
somente para representar a cota afro descendente e estrangeira em um grupo que
nunca se incomodou em ser maioria e nunca prestou atenção pro fato de que no
mundo existem pessoas diferentes delas, que podem ter vidas bem mais
complicadas que as suas.
É difícil a mulher negra (ou brasileira de qualquer cor) escapar dessa
superexposição na Alemanha. Confesso que já me deu vontade de sair de burca.
Mas sabe de uma coisa? Quem tem de se esconder não sou eu. E quem tem de ser
exposta é essa forma de pensar estigmatizante. Por isso resolvi pagar com a
mesma moeda. Comecei a criar o hábito de devolver os „elogios“ sem noção com a
mesma simpatia, insistência e falta de lógica. Os resultados são
surpreeendentes. Pessoas desacostumadas a serem alvo constante, mudam de
assunto, acham estranho, querem saber exatamente porque o „elogio“. Percebo
pelas reações que tenho razão de me sentir ofendida com certos comentários disfaraçados
de elogio que me objetificam e superexpõem.
É interessante ver como as pessoas reagem sensíveis quando o jogo vira.
Na Bahia, a gente costuma dizer „pimenta nos olhos dos outros é refresco“ e
para os adeptos da intolerância, ultrapassagem de limites, invasão do espaço
alheio, super exposição e objetificação dos outros é admiração e elogio.
Para As Blogueiras Negras no dia 31 de Outubro de 2013.
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